O termo quiralidade deriva do grego kheir, que significa “mão”, e a mão é o exemplo quiral por excelência. A mão direita é a versão espelhada da esquerda, mas elas não se encaixam perfeitamente quando sobrepostas.
Essa distinção entre um objeto e sua imagem espelhada é fundamental para entender a química e a vida. Objetos são considerados quirais se sua versão espelhada diverge da original (como uma tesoura ou uma mão) e não quirais se o objeto espelhado cabe perfeitamente no original (como um lápis). Essa diferença se manifesta até na escala molecular.
Quiralidade em Produtos para Canhotos
Marcas como a Lefty’s, que fabrica produtos para a minoria canhota (cerca de 10% da população), ilustram a importância da quiralidade no dia a dia. Uma tesoura para canhotos é um item quiral e essencialmente diferente de uma para destros, pois sua forma é espelhada.
Entretanto, é crucial diferenciar itens úteis (como tesouras e abridores de lata) de itens indiferentes (como lápis ou canecas com estampas meramente decorativas). Objetos indiferentes não são quirais e, portanto, sua funcionalidade não muda com a mão dominante.
A Descoberta Revolucionária de Louis Pasteur
No século XIX, o francês Louis Pasteur – também conhecido como o pai da microbiologia – investigou a geometria molecular do vinho, fazendo uma descoberta que seria um dos feitos mais importantes de sua vida: a quiralidade molecular.
Moléculas Destras e Canhotas
Pasteur estudou o ácido tartárico, que se cristaliza durante a fermentação do vinho. Ele notou que o ácido produzido em laboratório interagia com a luz de maneira distinta do ácido natural. Ao examinar a versão de laboratório, ele descobriu que havia dois tipos de cristais, um sendo a imagem espelhada do outro.
Com uma pinça, Pasteur separou os dois tipos de cristais e percebeu que, ao serem iluminados separadamente, um desviava a luz no sentido horário (dextrógiro) e o outro no sentido anti-horário (levógiro). O ácido natural, no entanto, só apresentava cristais dextrógiros.
Essas versões espelhadas da mesma molécula são chamadas enantiômeros. A experiência de Pasteur demonstrou que as moléculas podem ser destras ou canhotas, e que o modo como interagem com a luz é uma pista de suas propriedades.
Quiralidade e a Indústria Farmacêutica
A diferença entre enantiômeros não é apenas óptica; ela tem efeitos drasticamente opostos, especialmente no corpo humano. Os receptores celulares funcionam no modelo “chave e fechadura”, onde a quiralidade molecular é vital: a versão espelhada (a chave invertida) simplesmente não funciona.
O Caso da Mistura Racêmica
Em laboratório, a síntese de moléculas resulta tipicamente em uma mistura racêmica, que é uma combinação de 50% de moléculas levógiras e 50% de dextrógiras.
- No caso do ibuprofeno, apenas as moléculas dextrógiras têm o efeito anti-inflamatório, enquanto as levógiras são inativas.
- Embora a separação das moléculas (para um comprimido mais concentrado) seja possível, é um processo caro e complexo, então a mistura racêmica é geralmente mantida.
O Exemplo Trágico da Talidomida
Em outras moléculas, no entanto, um dos enantiômeros pode ser inofensivo e o outro, perigoso. O caso mais emblemático é o da talidomida, vendida nos anos 1950 e 1960 como sedativo e remédio para enjoo.
- A molécula dextrógira proporcionava o efeito desejado (sedativo).
- A molécula levógira estava associada à malformação fetal se ingerida durante a gestação.
- Pior: a molécula dextrógira, ao ser metabolizada pelo corpo, se convertia na levógira.
Na época, a farmacêutica não havia testado a droga em gestantes, e a falta de conhecimento sobre os efeitos de cada enantiômero levou ao nascimento de milhares de bebês com malformação dos membros. Este caso sublinhou a necessidade vital de estudar os efeitos de cada quiralidade para garantir a segurança dos medicamentos.
O Mistério da Homoquiralidade da Vida
A dificuldade de separar enantiômeros em laboratório contrasta com o que se observa na natureza: a vida na Terra é homoquiral, ou seja, favorece uma quiralidade em detrimento da outra.
A Vida na Terra é Destra
Todo o material biológico produzido por seres vivos apresenta uma preferência de quiralidade:
- Os aminoácidos que formam as proteínas são de “mão esquerda” (L). Dos 20 aminoácidos essenciais, 19 são quirais.
- Os açúcares, como a ribose que compõe o DNA, são de “mão direita” (D).
Essa preferência pela quiralidade “direita” (no caso dos açúcares e da estrutura de hélice do DNA) é a razão pela qual o ácido tartárico gerado na fermentação do vinho (um processo biológico) é exclusivamente dextrógiro.
Hipóteses sobre a Origem da Homoquiralidade
A grande questão da Biologia é: por que essa preferência? Por que a vida na Terra se fixou em apenas uma quiralidade? Se as condições simuladas em laboratório geram ambas as formas de moléculas, como surgiu o desequilíbrio inicial?
A comunidade científica aceita que um pequeno desbalanço inicial em um dos enantiômeros ganhou vantagem e foi amplificado até fixar a homoquiralidade que conhecemos. Mas a causa desse desbalanço inicial é incerta.
Berçários Estelares e Radiação UV
Uma hipótese sugere que a “escolha” de lado ocorreu em berçários estelares. A formação de estrelas emite radiação ultravioleta com polarização circular, que tem energia para alterar a quiralidade de uma molécula. A prevalência de um tipo de molécula (L ou D) seria passada aos planetas formados a partir dessas estrelas, como uma genética cósmica.
Eventos Ambientais Locais e o Acaso
Outra teoria, proposta pelo astrônomo Marcelo Gleiser, sugere que a quiralidade pode ser resultado de fenômenos ambientais locais e aleatórios, como erupções vulcânicas, queda de asteroides ou turbulência. Se esta for a causa, encontraríamos quiralidades variadas em diferentes planetas pelo Universo, dependendo de sua história.
A Assimetria Intrínseca do Universo
A terceira teoria, e a menos aceita, associa a homoquiralidade terrestre a uma assimetria fundamental do Universo. A força nuclear fraca – uma das quatro forças fundamentais – quebra a simetria de paridade ao atuar sobre o neutrino, que sempre gira para a esquerda.
Essa “quebra” da física, confirmada em 1957, levantou a hipótese de que essa característica enraizada no Universo poderia ter influenciado a assimetria das biomoléculas terrestres. Contudo, a força fraca é extremamente fraca em comparação com o eletromagnetismo, tornando improvável sua influência direta na estrutura molecular.
O Risco da “Vida Espelhada”
Uma explicação final considera que a Terra primitiva pode ter tido dois tipos de vida, uma “esquerda” e uma “direita”, e apenas um lado prosperou.
A busca por vida em outros planetas envolve a procura por moléculas orgânicas quirais, pois elas são a melhor evidência de vida. Na missão a Marte em 1976, foi oferecido aos possíveis micróbios do planeta vermelho açúcares de mão direita (os que nós metabolizamos) e de mão esquerda.
A possibilidade de criar vida espelhada em laboratório é discutida por pesquisadores, mas apresenta um risco enorme. Nosso sistema imunológico evoluiu para lidar apenas com a vida destra. Bactérias com quiralidade oposta passariam despercebidas pelo corpo e poderiam ser uma ameaça incontrolável a todos os seres vivos na Terra.